segunda-feira, 20 de abril de 2009

Sartre X Ponty

Em forma de uma narrativa ficcional, o enredo se fixa no debate de Jean Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty a respeito da primazia do Leitor ou do Escritor no texto literário. Como, no reino, quem manda é a rainha, prevalece a opinião da Literatura.

Era uma vez... num lugar não muito distante, um rei que tinha morrido. Pior: morrera sem ter escolhido o herdeiro. Nessa história, diferente das outras, havia apenas dois filhos, e não três como é de praxe nos contos de fadas. A rainha, cansada de cuidar do rei durante sua doença, resolveu conhecer o mundo. Disse para os filhos:

— Meu amado esposo, Algoritmo (o fantasma de uma linguagem pura) morreu. Vou dar uma volta pelo mundo, fazer novas amizades. Vocês, virem-se. Fui.

E assim, os dois príncipes ficaram sozinhos no castelo. Quer dizer, sozinhos, não, que eles tinham, cada um, um ministro-conselheiro, que lhes servia de tutor.

Um dos príncipes, chamado Leitor, como era muito chique, escolhera para conselheiro um filósofo francês chamado Jean-Paul. O outro filho, Escritor, para não ficar para trás, escolheu também um conselheiro filósofo e francês de nome Maurice. Esses filósofos davam muitos palpites aos príncipes, mas, como todo príncipe que se preze, estes não acatavam tin-tin por tin-tin suas orientações.

E havia os súditos: as letras, as palavras, as frases, os parágrafos. As letras eram bebezinhos lindos que arrulhavam sons ininteligíveis e todos achavam muito engraçadinhos. As palavras eram raparigas de todos os tamanhos e perfis: algumas joviais, outras serenas e ainda outras ferinas e cruéis. As frases eram jovens senhoras: algumas reticentes, outras categóricas e incisivas e ainda outras leves e conciliatórias. Os parágrafos eram homens muito pomposos, que gostavam de argumentar sobre tudo e não admitiam interferência. Só paravam de falar quando perdiam o fôlego.

Então outro parágrafo que já estava de prontidão, aproveitava a deixa e largava a verbosidade. Para controlar toda essa algaravia, os policiais se faziam presentes, atentos a qualquer deslize: a vírgula, o ponto e vírgula, o ponto final, o ponto de exclamação, o ponto de interrogação e as reticências. Como o reino era progressista, aceitava mulheres nas fileiras e pode-se dizer que as vírgulas eram um grande exército, trabalhadoras incansáveis, que, para não perder as fofocas, ficavam sempre no meio das frases. O ponto e vírgula também gostava de ficar por perto para saber das coisas, mas ele era um grande metido. As vírgulas só o suportavam porque, hierarquicamente, era superior a elas. O ponto final era enérgico: quando se apresentava, finalizava o assunto e ninguém questionava. O ponto de exclamação era um deslumbrado: surpreendia-se com tudo. O ponto de interrogação era bastante cansativo: vivia fazendo perguntas e por isso não tinha muitos amigos. As reticências eram policiais mais antigas, cansadas da lida e, com medo de ser demitidas e de não encontrarem outro emprego por causa da idade, não tinham opinião formada sobre nada. Eram vagas o suficiente para não se comprometerem.

E assim seguia a vida nesse reino montanhoso chamado Texto Literário, mesclado de magníficas paisagens e rios caudalosos com áreas perigosas, regiões íngremes e escarpadas e até mesmo com lugares ainda inexplorados.

Mas, voltemos aos príncipes e seus tutores. Esses últimos já tinham sido amigos, iam juntos ao mesmo bar, tinham os mesmos ideais. Mas depois brigaram e foram se afastando um do outro.Começaram a ter idéias conflitantes a respeito de um ponto muito delicado no reino: de quem seria de fato e de direito a realeza? Do Leitor ou do Escritor?

Jean-Paul, parisiense, já tinha sido novelista, teatrólogo, professor, e, segundo alguns, era o maior intelectual do existencialismo. No momento, tentava convencer o príncipe Leitor de que ele era, por direito, o soberano do reino.

Maurice, que nascera em Rochefort-Sur-Mer, publicara livros e era, essencialmente, professor. Portanto, achava-se extremamente gabaritado para servir de tutor ao príncipe Escritor. E só para discordar do colega Jean-Paul, não gostava de ser chamado existencialista. Dizia-se, então, filósofo da existência. Sua principal tarefa no reino era convencer o príncipe Escritor de que ele era, por direito, o soberano. Em que pesem as diferenças de opinião, um ponto em comum, no entanto, os unia. Ambos eram estudiosos da fenomenologia de Edmund Husserl e faziam parte da “geração dos descontentes”. Já se vê por aí que eles não se conformavam com qualquer coisa e não seriam pessoas muito fáceis de lidar. Também já se vê por aí que, sendo pessoas esclarecidas, não discutiam da maneira tradicional, com socos e pontapés. Valiam-se da argumentação e da troca de insultos de um jeito muito polido e acadêmico, pode-se dizer, até bonito, pois sua discussão era acerca do objeto estético e, assim, tinha de ser estética também.

Dizia Jean-Paul ao príncipe Leitor:

— Caro príncipe, você é, por direito, o regente do Texto Literário. Não há como questionar sua realeza: você é quem cria o sentido para ver uma frase como objeto estético. O Escritor, na verdade, é seu servo: ele trabalha para você. Pois o objeto literário é um estranho pião, que só existe em movimento. Para fazê-lo surgir é necessário um ato concreto que se chama leitura, ele só dura enquanto essa leitura durar. Fora daí, há apenas traços negros sobre o papel. Lembre-se: você transcende as palavras, como um ser imaginante, você começa a criar, a dar vida às personagens. Somente você sente o prazer estético, pois tem o direito de mexer com a imaginação. Seja paciente: ler implica prever, esperar. Prever o fim da frase, a frase seguinte, a outra página; esperar que elas confirmem ou infirmem essas previsões, a leitura se compõe de uma quantidade de hipóteses, de sonhos seguidos de despertar, de esperanças e decepções. Assim, você tem a função mais bela e mais agradável no reino: a função imaginante! Você pode lançar-se para um futuro desconhecido!

Leitor ficava fascinado com essas palavras e pensava:

— Jean-Paul tem razão! Eu sou o rei! Sou o rei do Texto Literário!

Ao seu turno, Maurice aconselhava o príncipe Escritor:

— Não ceda! Você é o regente! Você domina, por direito, o Texto Literário! Seu charme é maior. Você cativa a todos. Sua função é magnífica: suas palavras fazem o “fogo pegar” – o Leitor fica maravilhado com o que você diz! Você tem a capacidade de induzir os pensamentos do Leitor. Veja só o alcance do seu poder! Você é um orientador das significações. Pense no povo: como tecelão, o Escritor trabalha pelo avesso: lida apenas com a linguagem. Jean-Paul vive dizendo que você não tem prazer, só trabalho. Ora, isso é o que o povo deseja! Um rei trabalhador. Um rei que se mistura, que se descentra no corpo de outro. Um rei que não é narcisista, que compreende que a experiência estética tem a ver com o outro.

Escritor concordava com seu tutor e bradava:

— Eu sou o rei do Texto Literário! Posso comover o outro com a minha fala!

Assim, os tutores jogavam o Leitor contra o Escritor e dividiam o reino.

Nesse meio tempo voltou a rainha Literatura, revigorada da viagem e com novas idéias. Não ficou nada satisfeita com a desavença dos irmãos. Menos ainda com os tutores.

— Que história é essa? Então eu saio para descansar um pouco dos problemas e quando volto está essa confusão? Daqui para frente eu assumo. Vamos resolver esse assunto já, já.

A rainha era muito decidida. Resolveu chamar professores, literatos, filósofos e psicólogos do mundo todo para ver se acabava a querela. O ponto final colocou-se de prontidão. Quando a rainha chamasse, ele estaria por perto. Os convidados foram chegando. Alguns, desconfiados, outros, curiosos e outros aborrecidos com essa amolação, que eles tinham mais o que fazer, ora essa!

Discute que discute, não se chegava a lugar algum. Afinal de quem era o direito de reinar no reino do Texto Literário? Do Leitor ou do Escritor?

A rainha percebeu que aquilo ia longe e resolveu tomar uma medida drástica:

— Distribuam bebidas a todos. Vamos ver no que vai dar.

Alguns recusaram polidamente, outros bebericavam e outros foram com toda sede ao pote. A discussão foi amainando. Começou-se a conversar sobre carros, mulheres e futebol. Depois de algum tempo, já nem se lembravam porque estavam ali. Só sabiam que era uma festa e que a bebida estava sendo distribuída com generosidade. Os que de início recusaram, resolveram, por educação, beber, mas só um pouquinho. E de pouquinho a pouquinho, foram longe. Os que bebericavam começaram a gostar e a pedir mais. Já não bebericavam, bebiam. Os outros mesmo sem sede continuaram a ir ao pote, várias vezes, várias vezes, várias vezes.

No final da tarde estavam amigos. Davam-se tapinhas nas costas, trocavam endereços e diziam uns para os outros:

— Apareça lá em casa!

Por fim, foram embora sem resolver coisa alguma.

A rainha nem pestanejou:

— Como rainha, decido que, enquanto eu for viva (e pretendo viver muito), mando eu. Os príncipes Leitor e Escritor reinarão comigo, mas como amigos, não adversários. E os tutores, que parem de criar confusão. Que ajudem e não atrapalhem! Que seja tudo pelo bem do reino! Que seja tudo pelo bem do Texto Literário! Tenho dito!

Chamou os criados para limpar o salão e verificar se alguém tinha esquecido alguma coisa. Encontraram num canto, uma apostila perdida, em outro, uma análise literária, embaixo da mesa, uma teoria inacabada, e debaixo do sofá, um pensamento filosófico.

Nesse meio tempo os tutores confabularam:

— Por ora, vamos deixar assim. Mas esse assunto ainda não acabou. Logo, logo, a rainha arruma outra viagem a aí decidiremos essa questão!

O ponto final escutou a conversa e frustradíssimo, encolheu-se a um canto e chorou, mas discretamente, posto que ele era respeitado e não queria perder a pose nem a autoridade. Só quem presenciou o fato foram as reticências, mas elas não contaram a ninguém. Ficaram foi satisfeitas pois observaram que nesse reino teriam emprego por muito, muito tempo.

Por fim a rainha, satisfeita com a decisão que tinha tomado e crente que tudo estava resolvido, chamou sua dama- de- honra, amiga fiel e companheira, que por acaso era bibliotecária, e pediu-lhe:

— Ajude-me, agora, a arrumar as referências.

A bibliotecária prontamente apanhou as normas e fez seu serviço. E assim, o mundo ficou conhecendo os trabalhos de Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty.

Autor(a): Clarice Fortkamp Caldin

Fonte: www.acbsc.org.br/revista/index.php/racb/article/view/508/653