segunda-feira, 11 de maio de 2009

A Formação do Ser Humano - Uma Visão Filosófica


A racionalidade humana, com sua exclusividade, suscita reflexões sobre sua origem profunda, sua finalidade e sua natureza. A Filosofia se ocupa com particular sagacidade da busca pelas respostas às questões colocadas. Como se constrói o ser humano em sua dimensão biológica, psicológica e social? Como se define o ser resultante da interação destas dimensões?Em sua constituição, o ser humano, ente complexo e de difícil definição, constrói-se a partir de um universo imenso de variáveis e interferências. As matrizes determinantes do comportamento humano são imprecisas, difusas em seu universo relacional, e a análise destas matrizes costuma ser balizada por correntes filosóficas distintas, que partem de pressupostos distintos. Não cabe, no entanto, buscar definir ou erigir uma destas como a “correta” ou “mais confiável”, mas sim perceber que o ser humano é uma mescla de todas as concepções possíveis.A filosofia antiga trouxe à tona, em suas origens, a noção de que o ser humano se define a partir da vontade dos deuses, como se a natureza humana fosse constituída a partir de um projeto de vontade divina minimamente sujeito à interação da racionalidade e da vontade do próprio homem, do meio que o cerca e das condições contextuais em que este homem se insere. É uma visão algo fatalista, onde a miséria e a dúvida acompanham o homem como um fardo, um castigo que decorre da vontade inquestionável dos deuses. Os gregos, no entanto, com sua tradição racionalista irredutível, conceberam o homem como senhor de sua própria constituição e destino. Xenófanes dizia que os deuses são, na verdade, criação do homem dentro de seu contexto, afirmando que, se os bois pudessem descrever seus deuses, eles certamente teriam aspecto de bois, e se os lobos pudessem descrever seus deuses, por certo seriam lobos. Epicuro afirmava que os deuses estão em um ponto tão distante do universo que sua existência não influencia o destino dos homens, que se constituem a partir de suas próprias escolhas e opções, do meio que os cerca e das matrizes culturais que os absorvem. Esta tradição foi herdada pela filosofia medieval. Santo Tomás de Aquino chegou a cunhar a expressão Tábula Rasa para descrever a constituição do homem, ou seja, uma “folha em branco” onde, ao longo da vida, o homem escreve sua própria história e define, a partir de suas impressões, sua essência e natureza. Esta visão admite e consolida, portanto, a noção de que a construção do ser humano está intimamente, indissociavelmente, ligada ao meio em que esse homem se insere. (Detalhe: a expressão Tábula Rasa é erroneamente atribuída ao filósofo inglês John Locke. Isto constitui, no entanto, uma imprecisão.)Esse entendimento do determinismo, a que o entendimento do homem está sujeito, ganhou força ao longo da história da Filosofia com os pensadores racionalistas, como Renè Descartes, que formulou longo discurso a respeito da importância dos sentidos na percepção do mundo que cerca o homem, como forma de extrair conhecimento desta realidade que o cerca através da observação para, então, constituir opiniões e posicionamentos.A filosofia romântica do século XVIII, em especial a dos filósofos idealistas alemães como Hegel (pronuncia-se “Rêguel”), retomou a noção de que o homem possui em sua natureza uma dimensão espiritual elevada, genericamente chamada de Geist (pronuncia-se “Gáist”), que deve ser atingida através da evolução do homem em sua constante busca pelo conhecimento. Enxerga-se, aqui, novamente, a noção de que o ser humano é um ser em construção, dinâmico, cuja busca constante pela perfeição é o grande motor de sua evolução. Depreende-se, assim, um ser cuja construção depende de uma atitude de busca, que não nasce “pronto e acabado”, mas sim como uma obra a ser lapidada. A filosofia contemporânea, no entanto, lançou certo olhar pessimista sobre a natureza humana, existente em função dos horrores das grandes guerras mundiais, do uso sistemático da inteligência e do brilhantismo do homem para a construção de armas mais eficientes, dos genocídios e da eugenia. Autores como Jean-Paul Sartre sugeriram, na filosofia existencialista, a idéia de que a essência do ser humano se constrói tanto a partir das escolhas que nós mesmos fazemos quanto das escolhas que outros fazem por nós, cercando-nos com um universo imprevisível de variáveis que concorrem para a determinação de nossa essência. Sartre resume sua concepção na frase: “Eu sou aquilo que fiz com aquilo que fizeram de mim.”Enfim, a construção do ser humano é, inegavelmente, como queríamos demonstrar, multideterminada, multivariável. A filosofia comprova, com o desenvolvimento de suas concepções, a noção de que esta construção é fruto de um determinismo biológico pelas limitações orgânicas que a corporeidade impõe a todos nós, de um determinismo social pelo contato inevitável com o universo de outros seres que nos cercam, de um determinismo histórico pelo caráter definitivo que certas decisões impõe às nossas possibilidades, de um determinismo psicológico pela vinculação total de nossa natureza à particularidade de nossa forma pessoal de ver o mundo, ainda temperada por um certo ingrediente imponderável e imprevisível que, em última análise, é o grande responsável pela imensa diversidade humana.


Autoria: Mauricio Santos

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Sartre X Ponty

Em forma de uma narrativa ficcional, o enredo se fixa no debate de Jean Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty a respeito da primazia do Leitor ou do Escritor no texto literário. Como, no reino, quem manda é a rainha, prevalece a opinião da Literatura.

Era uma vez... num lugar não muito distante, um rei que tinha morrido. Pior: morrera sem ter escolhido o herdeiro. Nessa história, diferente das outras, havia apenas dois filhos, e não três como é de praxe nos contos de fadas. A rainha, cansada de cuidar do rei durante sua doença, resolveu conhecer o mundo. Disse para os filhos:

— Meu amado esposo, Algoritmo (o fantasma de uma linguagem pura) morreu. Vou dar uma volta pelo mundo, fazer novas amizades. Vocês, virem-se. Fui.

E assim, os dois príncipes ficaram sozinhos no castelo. Quer dizer, sozinhos, não, que eles tinham, cada um, um ministro-conselheiro, que lhes servia de tutor.

Um dos príncipes, chamado Leitor, como era muito chique, escolhera para conselheiro um filósofo francês chamado Jean-Paul. O outro filho, Escritor, para não ficar para trás, escolheu também um conselheiro filósofo e francês de nome Maurice. Esses filósofos davam muitos palpites aos príncipes, mas, como todo príncipe que se preze, estes não acatavam tin-tin por tin-tin suas orientações.

E havia os súditos: as letras, as palavras, as frases, os parágrafos. As letras eram bebezinhos lindos que arrulhavam sons ininteligíveis e todos achavam muito engraçadinhos. As palavras eram raparigas de todos os tamanhos e perfis: algumas joviais, outras serenas e ainda outras ferinas e cruéis. As frases eram jovens senhoras: algumas reticentes, outras categóricas e incisivas e ainda outras leves e conciliatórias. Os parágrafos eram homens muito pomposos, que gostavam de argumentar sobre tudo e não admitiam interferência. Só paravam de falar quando perdiam o fôlego.

Então outro parágrafo que já estava de prontidão, aproveitava a deixa e largava a verbosidade. Para controlar toda essa algaravia, os policiais se faziam presentes, atentos a qualquer deslize: a vírgula, o ponto e vírgula, o ponto final, o ponto de exclamação, o ponto de interrogação e as reticências. Como o reino era progressista, aceitava mulheres nas fileiras e pode-se dizer que as vírgulas eram um grande exército, trabalhadoras incansáveis, que, para não perder as fofocas, ficavam sempre no meio das frases. O ponto e vírgula também gostava de ficar por perto para saber das coisas, mas ele era um grande metido. As vírgulas só o suportavam porque, hierarquicamente, era superior a elas. O ponto final era enérgico: quando se apresentava, finalizava o assunto e ninguém questionava. O ponto de exclamação era um deslumbrado: surpreendia-se com tudo. O ponto de interrogação era bastante cansativo: vivia fazendo perguntas e por isso não tinha muitos amigos. As reticências eram policiais mais antigas, cansadas da lida e, com medo de ser demitidas e de não encontrarem outro emprego por causa da idade, não tinham opinião formada sobre nada. Eram vagas o suficiente para não se comprometerem.

E assim seguia a vida nesse reino montanhoso chamado Texto Literário, mesclado de magníficas paisagens e rios caudalosos com áreas perigosas, regiões íngremes e escarpadas e até mesmo com lugares ainda inexplorados.

Mas, voltemos aos príncipes e seus tutores. Esses últimos já tinham sido amigos, iam juntos ao mesmo bar, tinham os mesmos ideais. Mas depois brigaram e foram se afastando um do outro.Começaram a ter idéias conflitantes a respeito de um ponto muito delicado no reino: de quem seria de fato e de direito a realeza? Do Leitor ou do Escritor?

Jean-Paul, parisiense, já tinha sido novelista, teatrólogo, professor, e, segundo alguns, era o maior intelectual do existencialismo. No momento, tentava convencer o príncipe Leitor de que ele era, por direito, o soberano do reino.

Maurice, que nascera em Rochefort-Sur-Mer, publicara livros e era, essencialmente, professor. Portanto, achava-se extremamente gabaritado para servir de tutor ao príncipe Escritor. E só para discordar do colega Jean-Paul, não gostava de ser chamado existencialista. Dizia-se, então, filósofo da existência. Sua principal tarefa no reino era convencer o príncipe Escritor de que ele era, por direito, o soberano. Em que pesem as diferenças de opinião, um ponto em comum, no entanto, os unia. Ambos eram estudiosos da fenomenologia de Edmund Husserl e faziam parte da “geração dos descontentes”. Já se vê por aí que eles não se conformavam com qualquer coisa e não seriam pessoas muito fáceis de lidar. Também já se vê por aí que, sendo pessoas esclarecidas, não discutiam da maneira tradicional, com socos e pontapés. Valiam-se da argumentação e da troca de insultos de um jeito muito polido e acadêmico, pode-se dizer, até bonito, pois sua discussão era acerca do objeto estético e, assim, tinha de ser estética também.

Dizia Jean-Paul ao príncipe Leitor:

— Caro príncipe, você é, por direito, o regente do Texto Literário. Não há como questionar sua realeza: você é quem cria o sentido para ver uma frase como objeto estético. O Escritor, na verdade, é seu servo: ele trabalha para você. Pois o objeto literário é um estranho pião, que só existe em movimento. Para fazê-lo surgir é necessário um ato concreto que se chama leitura, ele só dura enquanto essa leitura durar. Fora daí, há apenas traços negros sobre o papel. Lembre-se: você transcende as palavras, como um ser imaginante, você começa a criar, a dar vida às personagens. Somente você sente o prazer estético, pois tem o direito de mexer com a imaginação. Seja paciente: ler implica prever, esperar. Prever o fim da frase, a frase seguinte, a outra página; esperar que elas confirmem ou infirmem essas previsões, a leitura se compõe de uma quantidade de hipóteses, de sonhos seguidos de despertar, de esperanças e decepções. Assim, você tem a função mais bela e mais agradável no reino: a função imaginante! Você pode lançar-se para um futuro desconhecido!

Leitor ficava fascinado com essas palavras e pensava:

— Jean-Paul tem razão! Eu sou o rei! Sou o rei do Texto Literário!

Ao seu turno, Maurice aconselhava o príncipe Escritor:

— Não ceda! Você é o regente! Você domina, por direito, o Texto Literário! Seu charme é maior. Você cativa a todos. Sua função é magnífica: suas palavras fazem o “fogo pegar” – o Leitor fica maravilhado com o que você diz! Você tem a capacidade de induzir os pensamentos do Leitor. Veja só o alcance do seu poder! Você é um orientador das significações. Pense no povo: como tecelão, o Escritor trabalha pelo avesso: lida apenas com a linguagem. Jean-Paul vive dizendo que você não tem prazer, só trabalho. Ora, isso é o que o povo deseja! Um rei trabalhador. Um rei que se mistura, que se descentra no corpo de outro. Um rei que não é narcisista, que compreende que a experiência estética tem a ver com o outro.

Escritor concordava com seu tutor e bradava:

— Eu sou o rei do Texto Literário! Posso comover o outro com a minha fala!

Assim, os tutores jogavam o Leitor contra o Escritor e dividiam o reino.

Nesse meio tempo voltou a rainha Literatura, revigorada da viagem e com novas idéias. Não ficou nada satisfeita com a desavença dos irmãos. Menos ainda com os tutores.

— Que história é essa? Então eu saio para descansar um pouco dos problemas e quando volto está essa confusão? Daqui para frente eu assumo. Vamos resolver esse assunto já, já.

A rainha era muito decidida. Resolveu chamar professores, literatos, filósofos e psicólogos do mundo todo para ver se acabava a querela. O ponto final colocou-se de prontidão. Quando a rainha chamasse, ele estaria por perto. Os convidados foram chegando. Alguns, desconfiados, outros, curiosos e outros aborrecidos com essa amolação, que eles tinham mais o que fazer, ora essa!

Discute que discute, não se chegava a lugar algum. Afinal de quem era o direito de reinar no reino do Texto Literário? Do Leitor ou do Escritor?

A rainha percebeu que aquilo ia longe e resolveu tomar uma medida drástica:

— Distribuam bebidas a todos. Vamos ver no que vai dar.

Alguns recusaram polidamente, outros bebericavam e outros foram com toda sede ao pote. A discussão foi amainando. Começou-se a conversar sobre carros, mulheres e futebol. Depois de algum tempo, já nem se lembravam porque estavam ali. Só sabiam que era uma festa e que a bebida estava sendo distribuída com generosidade. Os que de início recusaram, resolveram, por educação, beber, mas só um pouquinho. E de pouquinho a pouquinho, foram longe. Os que bebericavam começaram a gostar e a pedir mais. Já não bebericavam, bebiam. Os outros mesmo sem sede continuaram a ir ao pote, várias vezes, várias vezes, várias vezes.

No final da tarde estavam amigos. Davam-se tapinhas nas costas, trocavam endereços e diziam uns para os outros:

— Apareça lá em casa!

Por fim, foram embora sem resolver coisa alguma.

A rainha nem pestanejou:

— Como rainha, decido que, enquanto eu for viva (e pretendo viver muito), mando eu. Os príncipes Leitor e Escritor reinarão comigo, mas como amigos, não adversários. E os tutores, que parem de criar confusão. Que ajudem e não atrapalhem! Que seja tudo pelo bem do reino! Que seja tudo pelo bem do Texto Literário! Tenho dito!

Chamou os criados para limpar o salão e verificar se alguém tinha esquecido alguma coisa. Encontraram num canto, uma apostila perdida, em outro, uma análise literária, embaixo da mesa, uma teoria inacabada, e debaixo do sofá, um pensamento filosófico.

Nesse meio tempo os tutores confabularam:

— Por ora, vamos deixar assim. Mas esse assunto ainda não acabou. Logo, logo, a rainha arruma outra viagem a aí decidiremos essa questão!

O ponto final escutou a conversa e frustradíssimo, encolheu-se a um canto e chorou, mas discretamente, posto que ele era respeitado e não queria perder a pose nem a autoridade. Só quem presenciou o fato foram as reticências, mas elas não contaram a ninguém. Ficaram foi satisfeitas pois observaram que nesse reino teriam emprego por muito, muito tempo.

Por fim a rainha, satisfeita com a decisão que tinha tomado e crente que tudo estava resolvido, chamou sua dama- de- honra, amiga fiel e companheira, que por acaso era bibliotecária, e pediu-lhe:

— Ajude-me, agora, a arrumar as referências.

A bibliotecária prontamente apanhou as normas e fez seu serviço. E assim, o mundo ficou conhecendo os trabalhos de Jean-Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty.

Autor(a): Clarice Fortkamp Caldin

Fonte: www.acbsc.org.br/revista/index.php/racb/article/view/508/653

quarta-feira, 15 de abril de 2009

A Sentença da Vida Humana

A todo instante alguém se pergunta: que sentido tem estarmos vivos? Gera-se, então, dentro de si, uma guerra que sempre termina em desistência ou em inúmeras contradições. Até porque esta pergunta, já de súbito, pode ser desmenbrada em duas: "Por que estamos vivos?" e "Para que estamos vivos?".
A primeira busca uma resposta no passado, quer uma causa; a segunda busca uma resposta no futuro, quer uma consequência. É nesse ponto que o homem se diferencia dos outros animais, pela sua noção de temporalidade - motivo do seu maior desenvolvimento racional, mas também da sua angústia, pois, como pensa Kant, tudo o que o homem percebe é "encaixado" em sua mente no tempo e no espaço, ou seja, tudo é finito, tem começo, meio e fim.
Quando surge a dúvida sobre o sentido da vida e busca-se a causa, depara-se com um passado infinito. Da mesma forma, quando, a partir dessa dúvida, busca-se a consequência, depara-se com um futuro também infinito. Por isso, nunca se chega a uma conclusão segura, sendo que o conhecimento humano está limitado à finitude, assim como a água dentro de uma jarra está limitada à forma da jarra.
Todavia, cada ser humano é um tempo que se esgota - não o tempo dos relógios, sempre regular e homogêneo, mas o seu próprio tempo - e, devido a isso, persiste-se na idéia do sentido da vida, como uma fuga da possibilidade de a vida ser em vão. O problema deixa de ser, então, a vida como existência individual, passando a ser considerada sob o foco de existência social (dentro dos limites da razão): passa-se a analisar o homem como um "ser-no-mundo", em sua situação concreta.
Agora sim, num mundo finito espacialmente e tratando-se de uma existência que começa no nascimento e acaba no óbito, é possível que o homem acredite inteligível o sentido da vida.
O homem é um ser situado no mundo e, dessa forma, a sua vida está voltada também para este mundo. Um indivíduo vive, o tempo todo, fazendo escolhas as quais não interferem apenas na sua vida, mas também na vida dos outros homens. O único sentido, pois, que se pode encontrar e que englobe em si a vida de toda a humanidade é a liberdade de fazer escolhas, percebendo-se como um "ser-no-mundo" e, simultaneamente, um "ser-para-o-mundo", assumindo, assim, a responsabilidade sobre todas as próprias decisões, já que cada uma delas depende apenas do indivíduo, mas influencia toda a sociedade. "O homem está condenado a ser livre", já dizia Jean Paul Sartre.

Autoria: Samia Moraes