A racionalidade humana, com sua exclusividade, suscita reflexões sobre sua origem profunda, sua finalidade e sua natureza. A Filosofia se ocupa com particular sagacidade da busca pelas respostas às questões colocadas. Como se constrói o ser humano em sua dimensão biológica, psicológica e social? Como se define o ser resultante da interação destas dimensões?Em sua constituição, o ser humano, ente complexo e de difícil definição, constrói-se a partir de um universo imenso de variáveis e interferências. As matrizes determinantes do comportamento humano são imprecisas, difusas em seu universo relacional, e a análise destas matrizes costuma ser balizada por correntes filosóficas distintas, que partem de pressupostos distintos. Não cabe, no entanto, buscar definir ou erigir uma destas como a “correta” ou “mais confiável”, mas sim perceber que o ser humano é uma mescla de todas as concepções possíveis.A filosofia antiga trouxe à tona, em suas origens, a noção de que o ser humano se define a partir da vontade dos deuses, como se a natureza humana fosse constituída a partir de um projeto de vontade divina minimamente sujeito à interação da racionalidade e da vontade do próprio homem, do meio que o cerca e das condições contextuais em que este homem se insere. É uma visão algo fatalista, onde a miséria e a dúvida acompanham o homem como um fardo, um castigo que decorre da vontade inquestionável dos deuses. Os gregos, no entanto, com sua tradição racionalista irredutível, conceberam o homem como senhor de sua própria constituição e destino. Xenófanes dizia que os deuses são, na verdade, criação do homem dentro de seu contexto, afirmando que, se os bois pudessem descrever seus deuses, eles certamente teriam aspecto de bois, e se os lobos pudessem descrever seus deuses, por certo seriam lobos. Epicuro afirmava que os deuses estão em um ponto tão distante do universo que sua existência não influencia o destino dos homens, que se constituem a partir de suas próprias escolhas e opções, do meio que os cerca e das matrizes culturais que os absorvem. Esta tradição foi herdada pela filosofia medieval. Santo Tomás de Aquino chegou a cunhar a expressão Tábula Rasa para descrever a constituição do homem, ou seja, uma “folha em branco” onde, ao longo da vida, o homem escreve sua própria história e define, a partir de suas impressões, sua essência e natureza. Esta visão admite e consolida, portanto, a noção de que a construção do ser humano está intimamente, indissociavelmente, ligada ao meio em que esse homem se insere. (Detalhe: a expressão Tábula Rasa é erroneamente atribuída ao filósofo inglês John Locke. Isto constitui, no entanto, uma imprecisão.)Esse entendimento do determinismo, a que o entendimento do homem está sujeito, ganhou força ao longo da história da Filosofia com os pensadores racionalistas, como Renè Descartes, que formulou longo discurso a respeito da importância dos sentidos na percepção do mundo que cerca o homem, como forma de extrair conhecimento desta realidade que o cerca através da observação para, então, constituir opiniões e posicionamentos.A filosofia romântica do século XVIII, em especial a dos filósofos idealistas alemães como Hegel (pronuncia-se “Rêguel”), retomou a noção de que o homem possui em sua natureza uma dimensão espiritual elevada, genericamente chamada de Geist (pronuncia-se “Gáist”), que deve ser atingida através da evolução do homem em sua constante busca pelo conhecimento. Enxerga-se, aqui, novamente, a noção de que o ser humano é um ser em construção, dinâmico, cuja busca constante pela perfeição é o grande motor de sua evolução. Depreende-se, assim, um ser cuja construção depende de uma atitude de busca, que não nasce “pronto e acabado”, mas sim como uma obra a ser lapidada. A filosofia contemporânea, no entanto, lançou certo olhar pessimista sobre a natureza humana, existente em função dos horrores das grandes guerras mundiais, do uso sistemático da inteligência e do brilhantismo do homem para a construção de armas mais eficientes, dos genocídios e da eugenia. Autores como Jean-Paul Sartre sugeriram, na filosofia existencialista, a idéia de que a essência do ser humano se constrói tanto a partir das escolhas que nós mesmos fazemos quanto das escolhas que outros fazem por nós, cercando-nos com um universo imprevisível de variáveis que concorrem para a determinação de nossa essência. Sartre resume sua concepção na frase: “Eu sou aquilo que fiz com aquilo que fizeram de mim.”Enfim, a construção do ser humano é, inegavelmente, como queríamos demonstrar, multideterminada, multivariável. A filosofia comprova, com o desenvolvimento de suas concepções, a noção de que esta construção é fruto de um determinismo biológico pelas limitações orgânicas que a corporeidade impõe a todos nós, de um determinismo social pelo contato inevitável com o universo de outros seres que nos cercam, de um determinismo histórico pelo caráter definitivo que certas decisões impõe às nossas possibilidades, de um determinismo psicológico pela vinculação total de nossa natureza à particularidade de nossa forma pessoal de ver o mundo, ainda temperada por um certo ingrediente imponderável e imprevisível que, em última análise, é o grande responsável pela imensa diversidade humana.
Autoria: Mauricio Santos